Caravana Donner |
A CARAVANA DONNER
Quando o ser humano se encontra em uma situação extrema, muitas vezes é
seu lado bestial que toma as rédeas. Sobreviver é o que importa -
convenções morais e religiosas perdem o sentido.
Na metade do século XIX, multidões se lançavam através dos EUA atrás da
terra prometida na Califórnia. Esse fenômeno se repetiu anos mais tarde,
durante a Corrida do Ouro.
Durante o boom de peregrinos indo até a Califórnia, um grupo se formou
em torno de algumas famílias em Springfield (não, os Simpsons não
estavam junto), sendo que os mais importantes eram os Reed e os Donners.
O nome da caravana se refere aos irmãos Jacob e George Donner, cada um
acompanhado de suas famílias e empregados.
Durante o trajeto, outras famílias se uniram a eles, e no fim somavam 87
pessoas em mais de 500 caravanas com muitos provimentos, animais e
pessoas. Embora alguns achassem melhor seguir o mesmo caminho que todo o
resto já tinha seguido antes, os chefes da caravana Donner deram trela
para os palpites de um homem chamado Lansford Hastings, também pioneiro,
que dizia saber de um atalho ótimo.
O que ele esqueceu de avisar é que só testou o trajeto 4 anos depois de
publicá-lo em cartas e espalhar entre as caravanas; que ele até
conseguiu, mas não tinha mais de 500 carroças com ele; ele também podia
ter avisado que esse atalho acrescentou mais de 150km no trajeto.
O atalho levava a um canyon, um trecho montanhoso, o deserto de Salt
Lake, o Vale do Urso e depois pelas montanhas de Sierra Nevada. A viagem
havia sido friamente calculada para que partissem em Junho, no final da
primavera (assim haveria pasto pros animais) e chegassem antes nevascas
na serra.
Ravenous |
Durante a travessia do canyon já passaram um bom trabalho, removendo
pedras e abrindo picadas na mata. Levaram duas semanas para atravessar o
trecho montanhoso (que deveriam levar 2 dias), e nesse ponto as
picuinhas entre os vizinhos de tenda já começavam a surgir. Após uma
briga feia envolvendo um relho, o patriarca dos Reed esfaqueou outro
homem, e foi expulso da caravana. Seguiu sozinho, apenas com um rifle e
alguma comida dados por sua enteada, sem que a caravana visse.
Passando o trecho de pedras, chegaram no deserto de sal. Foi penoso,
muitos animais morreram de sede enquanto outros fugiram enlouquecidos
pelo calor, os suprimentos começaram a ficar mais escassos; e embora os
Donner tentassem administrar a divisão dos alimentos, as famílias
começaram a se dividir em "panelinhas".
Esses subgrupos acabavam seguindo em ritmo diferente dos demais, o que
no final, durante a crise que vem a seguir, deixou a caravana toda
espalhada pelo vale. Durante o trecho no inóspito deserto, alguns índios
os acompanharam com curiosidade e roubaram algumas cabeças de gado
(!!!). Mesmo assim, os Donner contrataram dois nativos como guias, Luis e
Salvador.
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A PRIMEIRA REFEIÇÃO
Quando chegaram ao último trecho montanhoso, em Outubro, começou a nevar
no vale do Urso. A maior parte das famílias ficou no sopé, ao longo de
um lago congelado, e se preparou como pode para o inverno. Usaram restos
de antigas cabanas de outros peregrinos e construiram barracas rústicas
com toras e usando o couro do gado para vedação e como telhado. Não
havia janelas nem portas, apenas um buraco por onde se entrava e saía.
George Donner abriu um talho na mão quando cortava lenha, e por orgulho
(ou por que não havia mesmo o que fazer) deixou assim. Quando foi
resgatado, cerca de 5 meses depois, seu braço estava tão gangrenado que
ele não podia se mover.
Os mantimentos eram motivo de brigas e conforme o frio aumentava, a
comida diminuía, até um ponto em que acabou. Muitas crianças trocavam de
cabana e acabavam sendo cuidadas por outras pessoas, e famílias
inteiras migravam para outras casas buscando qualquer alento. Diversos
grupos tentaram fazer expedições ao cume, outros para o caminho de
volta, mas todos acabaram desistindo por conta de muros de neve e da
extrema dificuldade em se mover. As famílias passaram a fazer uma sopa
grossa e hedionda usando ossos dos animais, e cozinhavam o couro e o
comiam.
Não havia caça, e ninguém sabia como pescar nessas condições. O único
que sabia caçar (mais ou menos...) era William Eddy, e ele até matou um
urso, mas a carne não durou muito. O único alimento era o couro mesmo.
OU...
Muitas das crianças, por ficarem semanas a fio comendo couro, roubavam e
comiam cadarços, tiras e cintos dos homens que as resgataram, quase
cinco meses depois, tamanho o trauma. O cheiro nas cabanas era
insuportável. O couro usado nos telhados estava apodrecendo, e não havia
possibilidade de tomar banho ou de se livrar dos dejetos. Quem adoecia
apenas esperava até a morte e os cadáveres ficam dentro das cabanas, ou
semi enterrados na neve.
Um grupo de 27 pessoas, entre eles Eddy e os dois nativos, saiu em uma
última tentativa desesperada de pedir socorro, usando o pouco couro
restante para fazer sapatos para neve. O grupo ficou perdido durante
mais uma forte nevasca, e aos poucos a ideia de canibalismo começou a
ser discutida até se tornar unânime. Só não se decidiam se escolheriam
por votação ou se apenas iriam esperar que alguém morresse primeiro.
Dois deles faleceram possivelmente por exposição ao frio, fome e
cansaço. Um terceiro, Patrick Dolan, tirou as roupas e saiu correndo
peladão pela neve. Voltou alguns minutos depois de sua crise e caiu
duro. Os membros do grupo não pensaram duas vezes e começaram a comer
tiras de carne de suas pernas. Eddy não quis comer carne humana, mas com
o tempo acabou sucumbindo a fome. Os homens evisceraram os três
defuntos, fizeram um tipo de charque com os órgãos e os músculos e
embalaram para a viagem, cuidando para que ninguém comesse seus
parentes.
O grupo considerou matar os dois guias indígenas, que ouviram isso e, espertos, deram no pé.
Para seu azar, se perderam por um mês e ficaram sem comer por nove dias.
Quando o grupo os achou, quase mortos, atirou neles e os devorou.
Esse grupo dos "sapatos de neve" foi resgatado antes da caravana Donner,
sete sobreviveram e foram essenciais para localizar algumas das
cabanas, quando começaram a enviar grupos de socorro.
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O RESGATE
James e Margaret Reed |
Lembram do Reed? O que foi expulso? Ele conseguiu seguir o caminho
traiçoeiro e chegou no final! Estava bem, quentinho, alimentado, mas
sentia uma leve culpa por deixar sua família sozinha la, incluindo sua
esposa, seus filhos e enteados. Foram feitas diversas tentativas de
resgate. Três grandes expedições deram certo, a primeira buscou cerca de
metade dos sobreviventes, na maioria crianças e algumas mulheres. Reed
participou de algumas e alguns sobreviventes dos "sapatos de neve"
também.
A segunda expedição foi mais bizarra, onde se viram sinais óbvios de
canibalismo. Reed e Eddy participaram dela. Um dos homens que estava na
primeira leva de socorristas alegou que, durante o primeiro resgate, uma
das mulheres e sua família estava "cogitando devorar o empregado Milt".
Reed encontrou o torso fatiado de Milt na neve atrás da cabana.
Mais adiante, em outro acampamento, viram um jovem chamado Trudeau
carregando uma perna humana. Quando ele percebeu que pessoas se
aproximavam, a jogou em um buraco na neve, onde estavam restos do corpo
de Jacob Donner. Sua esposa se recusou a comer a carne do marido, mas
admitiu que deu estômago e tripas de Donner para as crianças que estavam
sob seus cuidados, mas "foi só pro mais novinho!" (ah bom..). Na mesma
cabana estava seu irmão George, com o braço apodrecido e a infecção
atingindo o ombro.
Na terceira expedição, em que Eddy participou também, o grupo chegou em
uma cabana mais afastada, onde deveria estar a família de Eddy. Um dos
sobreviventes, Lewis Kesenberg, confessou que comeu os restos do filho
caçula de Eddy, que havia sucumbido ao frio. Eddy jurou matar Kesenberg
(e realmente tentou!) quando chegassem na California.
Outros homens acharam na cabana de Kesenberg uma das pistolas de Jacob
Donner, algum dinheiro, pertences da esposa dele e tripas e ossos
humanos em uma tigela. Tentaram linchar Kesenberg (como se ele fosse o
único culpado), mas ele garantiu que ela, ao perceber que iria morrer,
lhe sugeriu que guardasse o dinheiro para que seus filhos o usassem. De
fato muitos historiadores quiseram o colocar como único vilão na
história, mas isso nunca foi provado (assim como muitos dos fatos
citados).
Muito se discutiu em torno da veracidade desses testemunhos, sendo que
alguns sobreviventes alegaram que não houve canibalismo. Outros, que
eram crianças na época, contam que lembrar de momentos em que os adultos
admitiam que lhes dariam carne "de gente". Nesse ínterim, além dos
diversos relatos dos sobreviventes, alguns historiadores vem tentando
entender o que realmente ocorreu no alto da Passagem dos Donner, como
ficou conhecida após o incidente.
Uma das sobreviventes, Virginia Reed, enviou uma carta a uma prima,
alguns meses depois, contando alguns detalhes do inferno pelo qual
passou. Virginia jurou que sua família foi a única a não comer carne
humana (aham), e que nada disso devia desestimular ninguém a buscar uma
vida melhor na Califórnia.
Também disse "..nunca pegue atalhos. E se apresse o mais rápido que puder".
Fonte: PaixãoAssassina
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