Por Tânia Mara Souza
No outdoor, enquanto o cowboy fumava, as luzes de néon invadiram as cortinas vulgares. Em penumbra, no quarto abafadiço, um ventilador girava suas engrenagens corroídas quando Paulo moveu-se na cama, murmurando, preso aos sonhos. O suor escorria pelo pescoço, e ainda adormecido, passou a mão na pele pegajosa, a noite estivera abafada, e o ventilador, em sua ladainha, espalhava a poeira que os hotéis guardam com o tempo. A música vinda da rua era dolorosamente bela: — For you I'm bleeding... For you, for you…
Foi a canção que o despertou. Ainda naquele estado de sonolência, as mãos procuraram o pequeno celular embaixo do travesseiro. Abriu os olhos, e no painel azulado, viu que ainda faltavam quinze minutos para às quatro horas. Mais uma vez despertaria e seguiria viagem, deixando aquele hotel, mas ah, ah como odiava acordar antes do despertador, roubado em quinze minutos do seu sono. Virou a cabeça para o lado, olhos fechados, empurrando os lençóis para longe, tentou não pensar no dia que logo se iniciaria. Tentou não sentir a boca ácida, guardando resquícios de whisky , enjoado com o cheiro da maquiagem e do perfume oriental de alguma prostituta que lhe fizera companhia parte da noite. Vencendo a náusea, cobriu a cabeça para fugir da luz vinda da janela. A canção havia desaparecido, mas a melodia ainda ecoava.
Havia sonhado, a imagem clara sua mente, asas de borboletas, lábios que balbuciavam palavras que não podia entender. E na modorra entre o sono e a realidade, sabia que voltaria a sonhar com a menina, segurando algo não identificado e murmurando.
A cabeça moveu-se no travesseiro úmido, os sentidos entorpecidos, adormeceu. Viu-se em um corredor escuro, cercado por quartos em ruínas, e ao seu lado, as paredes grafitadas. Seus passos arrastavam-se no chão escorregadio, enquanto uma água fétida surgia fininha na parede ao lado. As cores embaçadas da madrugada envolviam a tudo, e cada penugem do seu corpo arrepiou-se, quando a canção cresceu, e ouviu seu nome em sussurros, entrecortando a melodia. Pressentiu nas sombras um vulto passando, virou-se devagar, indeciso entre correr e o medo que o paralisava, mas não havia nada, nada além uma porta entreaberta, de onde vinha um soluço, um pequeno lamento. Paulo empurrou a porta, devagar, e de repente, todos os seus membros amorteceram-se: era ela!
Estava encostada na parede, em um canto imundo, cercada por teias de aranhas, quando ele a viu. Bianca, os cabelos dourados em duas tranças e a fita solta pelos ombros. A velha angústia o envolveu, o ar faltou quando a dor tornou-se física. Sem perceber, uma lágrima começou a cair dos seus olhos. Balbuciou o nome que há muito não ousava pronunciar e os olhos amendoados ergueram-se, fitando-o sem parecer reconhecê-lo, mas os lábios cheios e rosados abriram-se, implorando:
— Socorro, por favor...
Paulo via os lábios moverem-se em um pedido mudo, ouvido dentro de si quando ela apontou com os braços finos o outro canto da sala. Ali, bem a frente de Bianca, da sua Bianca, um gigantesco escorpião branco retorcia-se. Feroz, a pele estranhamente branca, o animal possuía no ferrão uma ponta vermelha, que agitava ameaçador. O ferrão ia e vinha em direção a moça, cada vez mais perto. Paulo olhou ao redor, e em suas mãos, viu de repente um facão, e avançou aço contra carne, e quanto mais fortes eram os golpes, mais o peçonhento se debatia, os olhos arregalados e azuis explodindo em sangue. As sombras cresciam por todo lado, e gemidos finos subiam pelo ar, até que a carcaça albina jazia derrotada. Levantou os olhos, mas ela já não estava, apenas a ponta do vestido branco arrastando-se pela porta, e desesperado, ele a seguiu pelo corredor enlodado. E enfim, quando os corredores bifurcaram-se, ele a viu, esperando-lhe. Ela a sua frente, as tranças douradas, a fita azul, e a renda suave enfeitando a borda do vestido, como da primeira vez que a vira. Os mesmos olhos amendoados fitando-o, em expectativa. Ela agora em seus braços, a boca na sua, a pele, o cheiro que nunca o havia abandonado, os braços o envolveram e Paulo tremia enquanto seu corpo a prendia na parede, explodindo de ternura e paixão, tocando-a por cima do algodão, sentindo o coração batendo sob o seu peito, ele chorou. No ar, as notas espalhavam-se: — And every new dawn... ends in bitterness ...
O ventilador movia-se lentamente no quarto, e as hélices foram parando, parando, até que o silêncio sufocou as horas e Paulo acordou. Os olhos estavam úmidos, e os soluços irromperam no peito do homem. Abraçou o próprio corpo, sentindo o cheiro da pele amada, depois de tanto tempo, porque sua mente a trouxera de volta? A velha dor... amarga dor. O calor crescia, e novamente procurou o pequeno celular, os números diziam claramente: 3horas e 45 minutos. Um pesadelo, um maldito sonho. A cabeça repousou no travesseiro, aquela noite havia sido longa, sentia sede, os lábios ressecados. E ela. Ela impregnando-se em sua alma. Fechou lentamente os olhos, mais quinze minutos, e na esperança de tê-la um pouco mais, forçou o corpo a descansar novamente. Foi se deixando embalar pelo sono, e o sonho voltou. Estava de volta ao corredor escuro. Na parede, recortes de jornais manchados de sangue, letras turvas no papel embolorado impediam-no de ler.
Os sussurros agora chamavam seu nome, e as mãos tocavam o corredor escuro enquanto ele corria. Ouvia os passos leves e revia o campo onde ele e Bianca haviam corrido pela primeira vez, sonhado tantos sonhos, dançando na varanda, as faces tocando-se, ah, era a mesma melodia.
Uma porta abriu-se ao seu lado, e o mesmo lamento de antes veio de uma sala em ruínas. A menina com asas de borboleta apareceu, estendendo-lhe os braços, oferecendo-lhe algo que não podia identificar, as palavras mudas murmuradas nos lábios, mas quando um ruído feroz quebrou a mesa de vidro, ela se afastou, entristecida. Um riso áspero cortou a sala, e no outro canto, Bianca chamava por ele, implorando por socorro. O escorpião branco erguia-se, mas seus pés estavam presos no lodo imundo da sala. A agulha rubra tocou a face pálida, e Bianca gemeu quando o ferrão vermelho perfurou-lhe o peito, a ponta fina dilacerando a renda branca, rasgando a carne e o tecido até um rio rubro escorrer pelo chão, o ventre dilacerado e, horror dos horrores, um bebe chorava entre as vísceras. Paulo gritou, gritou, gritou, até acordar com o próprio grito, as imagens congelando-o na cama, o ódio tomando-lhe o peito, viu-se preso na velha angústia, revendo o casamento, a família, o bolo, a valsa, as imagens dançavam em sua mente, e ele não parava de gritar. Bianca sorrindo, Bianca no jardim, Bianca voltando do médico, Bianca caída no chão da sala, sangue por todo lugar, e desde então, uma viagem eterna por hotéis e putas decadentes, embriagando-se com whisky barato, fugindo da dor. Ao perceber que ainda gritava, Paulo tentou levantar-se, mas a dor na cabeça o impediu. O celular caído no chão marcava ainda 3horas e 45 minutos, olhou para o teto e teve a impressão de que este estava cada vez mais perto, sorveu sequioso um resto de agua mineral da garrafa caída sobre o tapete, e temendo as sombras, fechou os olhos, vendo-se de novo no corredor estreito, os gritos de Bianca chamando-o, jurando amor, pedindo, implorando por socorro, enquanto o escorpião albino balançava ferozmente o ferrão vermelho, os olhos dela nos dele, tantas palavras não ditas, a velha dor.
Via-se de novo no sonho, consciente, porém preso, hipnotizado entre o sonho e a realidade, mas ainda assim, não podia reagir, e o escorpião branco foi se aproximando, e Paulo debatia-se, os braços amarrados, sabendo sem razão que enquanto gritasse estaria salvo. Foi quando, em um canto, percebeu a menina-borboleta, entristecida, estendendo-lhe os braços. Em suas mãos, reconheceu um antigo espelho, quando Paulo viu-se refletido, o ar faltou, e num arquejo, era ele no espelho, era ele, e era o escorpião branco, era ele a fera, e o ferrão que dilacerou o ventre amado, julgando ferir uma semente que não aceitava como sua, era o dele. No rosto da menina que o fitava, reconheceu seus próprios olhos azuis, e as tranças douradas de Bianca, e finalmente entendia o que ela murmurara, em monossilábicos gemidos:
— Por que, meu pai? Por quê? Eram oito horas da manhã, quinta-feira cinzenta, quando os jornais noticiavam a execução por injeção letal. O condenado havia cometido o crime de uxoricídio. A esposa estava gravida e por milagre, a criança sobrevivera. Quatorze anos passados em silêncio aterrorizante, vários laudos depois, enfim a sentença se cumpriria. Na pequena sala, uma jovem de cabelos trançados observava, ao seu lado, um relógio parado marcava 3 horas e 45 minutos. Com olhos marejados, viu enfim a injeção letal perfurar a tatuagem de um escorpião no braço do pai. Para ela, era o fim.
No velho quarto de hotel, as luzes de neon apagaram-se quando a garota-borboleta partiu. Paulo ficou sozinho no velho corredor, ouvindo a melodia dentro de si, “for you, for you i'm bleeding” e ao longe, a voz suave de Bianca pedindo por ele. Sentindo às suas costas o escorpião branco rastejar nas sombras da eternidade, seus passos seguiram pelo corredor.
Fonte: assustador.com.br
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sábado, 8 de maio de 2010
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