A donzela, o menino, a menina do relâmpago: três crianças incas, sepultadas no alto de uma montanha gelada há 500 anos, como oferendas aos deuses. Seus corpos congelados estão entre as múmias mais bem preservadas do mundo, com órgãos internos intactos, sangue ainda presente no coração e nos pulmões, pele e traços faciais quase imaculados. Eles congelaram até a morte depois de cair no sono, e agora seus corpos finalmente estão sendo revelados ao público num museu da Argentina.
A primeira das crianças fez sua "estréia" no Museu de Arqueologia de Grandes Altitudes, na cidade de Salta, que fez parte do Império Inca até o começo do século 16. Trata-se de La Doncella, "a Donzela", que morreu aos 15 anos. O museu de Salta foi construído especialmente para abrigar os cadáveres, mas sua direção decidiu abrir a exposição sem alarde, em respeito aos mortos.
"São pessoas mortas, indígenas mortos", explica Gabriel Miremont, diretor e idealizador do museu. "Não é algo a ser celebrado." As duas outras múmias devem se juntar à Donzela nos próximos seis meses. Para preservar os corpos, foi desenvolvido um abrigo especial, formado por um cilindro de acrílico o qual, por sua vez, fica no interior de uma caixa de vidro triplo. Um sistema computadorizado replica as condições climáticas da montanha onde as múmias foram achadas: pouco oxigênio, baixa umidade e pressão, temperatura de 18 graus Celsius negativos.
A sala onde a Donzela está fica na penumbra, e seu "casulo" está sempre escuro. Os visitantes que quiseram vê-la precisam acender uma luz. "Isso era importante para nós", diz Miremont. "Se você não quer ver o cadáver, não aperte o botão. A decisão é sua. Ainda dá para ver as outras partes da exposição."
As crianças foram encontradas no monte Llullaillaco, um vulcão de 6.739 m de altura perto da fronteira da Argentina com o Chile. Seu sacrifício ocorreu num ritual conhecido como capacocha. Elas caminharam por centenas de quilômetros, vindo de Cusco, a antiga capital inca no Peru. Ao chegar à montanha, beberam chicha (bebida alcoólica feita com milho), foram colocadas para dormir em nichos subterrâneos e morreram congeladas. Só crianças bonitas, saudáveis e fisicamente perfeitas eram escolhidas para o sacrifício. De acordo com as crenças incas, elas não morriam, mas se juntavam a seus ancestrais e viravam uma espécie de anjos da guarda de suas vilas natais.
Os corpos eram tão parecidos com crianças dormindo que estudá-los "mais parecia rapto do que trabalho arqueológico", compara Miremont. A menina mais nova, com seis anos de idade, foi atingida por um relâmpago algum tempo depois de morrer, o que causou queimaduras em seu rosto, corpo e roupas. Ela e o menino, de sete anos, tinham crânios levemente alongados, "plástica" feita com panos amarrados à cabeça. É um sinal de status elevado, e talvez até de ligações com a realeza inca.
Testes de DNA revelaram que as crianças não tinham parentesco entre si, e tomografias mostraram que eles tinham recebido boa alimentação e não tinham ferimentos pelo corpo. A Donzela aparentemente sofria de sinusite e de um problema nos pulmões, provavelmente causado por uma infecção.
As montanhas da região de Salta abrigam pelo menos outros 40 enterros rituais com sacrifícios humanos, mas Miremont diz que os indígenas que vivem na área não querem que mais corpos sejam retirados. "Vamos respeitar os desejos deles", afirma o pesquisador. Para ele, os três corpos foram suficientes para a pesquisa. "Não precisamos abrir outros túmulos."
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